ÓRGÃO POSITIVO
DA CAPELA DA CASA DE MATEUS

Em 1744, António José Botelho Mourão, o 3º Morgado de Mateus, via finalmente concluído o sonho que alimentara ao longo de anos: com um gesto arquitetónico arrojado, imaginado em comum com o grande Nicolau Nasoni, acabava de transformar radicalmente a paisagem na qual a família se encontrava instalada já há mais de século e meio e em redor da qual criara o seu pequeno império de vínculos e morgadios. Nascera a Casa de Mateus. 

A nova Capela, que haveria de trazer ao complexo arquitetónico a indispensável dimensão religiosa, estava ainda em construção e só viria a ser terminada em 1750 pelo Mestre José Álvares do Rego. Porém, nesta altura, António José, com a ajuda do seu filho D. Luís António, teria já encomendado o órgão positivo que haveria de ser instalado no coro alto. Datado de 1747, de construtor desconhecido, provavelmente discípulo dos grandes organeiros galegos que dominavam a construção deste instrumento que conheceu o seu auge no período barroco, o órgão vinha engrandecer a função eucarística, mas tornava também possível a fruição pela família e seus convidados de todo um repertório que então se espalhava pela Europa. 

O órgão positivo, assim chamado porque, ao invés dos grandes órgãos embutidos na arquitetura das catedrais, pode ser transportado e pousado em sítios diferentes, é uma peça de museu como devem ser as peças de museu: vibra, soa, fala connosco e faz-nos viver sensações que, vindas de outros tempos, se tornam uma possibilidade de futuro.

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Quis a coincidência que, nesse mesmo ano de 1744, Nicola Porpora, músico napolitano com uma larga reputação construída entre Nápoles, Viena e Londres, escrevesse o seu Nunc Dimitis, peça barroca ‘para quatro vozes e instrumentos’, destinada a ser cantada pelas órfãs do Ospedaletto de Veneza. O mesmo Nunc Dimitis que, duzentos e sessenta e cinco anos depois, em 2019, o público que enche a Capela da Casa de Mateus para o concerto de encerramento da XXIX edição dos Encontros Internacionais de Música aplaude longamente, ainda tocado pela envolvência das quatro vozes espalhadas pelas quatro frentes da Capela, pelas flautas, fagotes e oboés, pelo violino barroco, mas, sobretudo, pela riqueza de timbre e pela espessura do órgão positivo que, desde o coro alto, se faz ouvir em toda a nave.

Entre um e o outro destes momentos, ao longo de mais de um quarto de milénio, há toda uma história que nos permite compreender esta persistência matricial da música na Casa. Se não sabemos muito sobre a vida doméstica da Casa nesse período, sabemos que, em 1756, D. Luís António casa com D. Leonor de Portugal, jovem lisboeta da família dos Condes de Redondo, habituada à vida da Corte e às suas indulgências culturais, o que deixa supor o hábito da música e da sua partilha no salão barroco.

Sabemos que, em 1760, o empresário italiano Nicola Setaro se instala no Teatro do Corpo da Guarda, no Porto e aí difunde a prática regular da ópera barroca, provavelmente sob os ouvidos atentos de D. Luís António e D. Leonor…

Sabemos que, alguns anos mais tarde, em 1767, já Governador e Capitão-Geral de São Paulo, no Brasil, D. Luís António faz inaugurar a Casa de Ópera com uma representação de Anfitrião ou Júpiter e Alcmena, ópera de António José da Silva, judeu luso-brasileiro que se afirmara como o grande dramaturgo do teatro musical do período barroco em Portugal, apesar de uma vida muito curta que terminou em 1739 na fogueira da Inquisição. Sabemos que D. Luís António, estadista do seu tempo, empenhado na visão reformista do Marquês de Pombal, afirmava que uma capitania como a de São Paulo devia ter «teatros públicos bem regulados, pois deles resulta a todas as nações grande esplendor e utilidade, visto serem a escola onde povos aprendem as máximas sãs da política, da moral, do amor de pátria, do valor, do zelo e da fidelidade com que devem servir aos soberanos, e por isso não são permitidos, mas necessários.»

Sabemos também que, desde a instituição da Fundação da Casa de Mateus, em 1970, a intensa atividade cultural se desdobra em muitas frentes, que convoca todas as disciplinas e inventa todos os seus cruzamentos, se inscreve de uma forma sempre contemporânea numa espécie de devir da memória, mas que regressa sempre à inspiração barroca que, da arquitetura, se faz música… 

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Sabemos que os Encontros Internacionais de Música se iniciaram em 1978 e que, desde então, persistem como marco e celebração do prazer da transmissão e da partilha das práticas historicamente informadas da música barroca. Ou que, em 1989, o mestre organeiro António Simões restaura o órgão e que, no ano seguinte, o grande Gustav Leonhardt, presença fundadora dos Encontros, o traz de volta a uma vida de instrumento ativo com um memorável concerto de inauguração, dádiva concreta do passado a fazer-se ouvir em ouvidos presentes. Sabemos que, em 2018, a Fundação assinala, em co-produção com a Ópera de A Coruña, os 250 anos da implantação da ópera na Península Ibérica, com o recital Nicola Setaro, construtor de utopias, a juntar a grande mezzo-soprano Vivica Genaux, o barítono Borja Quiza e a Orquestra Barroca de Mateus, que aí fazia o seu concerto inicial, sob a direção de Ricardo Bernardes.

Sabemos, sim, que o órgão positivo, assim chamado porque, ao invés dos grandes órgãos embutidos na arquitetura das catedrais, pode ser transportado e pousado em sítios diferentes, é uma peça de museu como devem ser as peças de museu: vibra, soa, fala connosco e faz-nos viver sensações que, vindas de outros tempos, se tornam uma possibilidade de futuro.