MENINA DEITADA
DE JOÃO CUTILEIRO
Parecendo que dorme desde sempre sobre o espelho de água fronteiro à Casa, a Menina Deitada foi esculpida a partir de um só bloco de mármore para figurar na exposição retrospetiva da obra de João Cutileiro, programada pela Fundação da Casa de Mateus em Maio de 1981. Momento singular da programação intensa que anima a Casa, a Região e o País desde a década de setenta do séc. XX, a exposição foi um momento marcante no compromisso entre arte e paisagem, entre a descoberta da obra na pedra e a sua inscrição num lugar com memória. Como se fizéssemos uma viagem no tempo, procuremos compreender como evoluiu e se construiu esta paisagem da qual a Menina Deitada é hoje um dos ícones mais recordados.
Evocação marmórea de um corpo feminino real, sempre naquela textura de quem é trazida da pedra para assumir uma imagem contemporânea do ideal renascentista de beleza e perfeição, a Menina desafia com a sua natureza despojada a exuberância da paisagem barroca.
Nas décadas que antecedem a abertura do Museu, em Abril de 1961, D. Francisco de Sousa Botelho e Albuquerque empreende uma recuperação profunda da Casa, cujo estado de degradação havia avançado rapidamente, e desenha um plano paisagístico que transformará o seu enquadramento e o olhar que sobre ela deitamos. Começa pela transformação dos jardins a nascente, sobretudo os do parterre inferior, encomendados a personalidades com linguagens e percursos diversos. Ainda nos anos 40, Gomes de Amorim desenha um novo jardim neobarroco, à semelhança do que havia construído anos antes por encomenda da Condessa de Mangualde, e António Lino desenha os Jardins de Água, síntese entre uma linguagem modernista e a necessidade prática de criar um depósito de segurança, em caso de incêndio. Na década seguinte, o pintor Paulo Bensliman, presença constante na Casa, reinventa o jardim barroco sob uma perspetiva minimal e propõe o Jardim das Coroas. Como elemento estruturante deste conjunto, D. Francisco imagina e faz construir o majestático túnel de cedros, verdadeiro caminho fora do tempo. Mas é no início dos anos sessenta que se dá a mais surpreendente reescrita desta paisagem. Entre 1960 e 1961, Gonçalo Ribeiro Telles, figura maior da primeira geração de Arquitetos Paisagistas, já envolvido no processo que conduziria à construção, poucos anos depois, dos Jardins da Fundação Calouste Gulbenkian, é chamado por D. Francisco para reimaginar o enquadramento da fachada principal da Casa. O resultado é um frondoso parque arbóreo, que reforça a ideia de inscrição da arquitetura num espaço natural e cria um genial jogo de ocultação, a propor ao visitante que tome o caminho de entrada como transição para outra dimensão do espaço e do tempo e só depois o deixa deparar-se com o cenário deslumbrante das fachadas da Casa e da Capela refletidos num vasto espelho de água, cujo desenho modernista reforça surpreendentemente o efeito barroco do conjunto.
É aí, precisamente, que os curadores da exposição de 1981 decidem instalar a Menina Deitada. Variação do tema mais recorrente na obra do escultor que começou a destruir simbolicamente o salazarismo com a visão genial de D. Sebastião que se dá a ver em Lagos desde 1972, evocação marmórea de um corpo feminino real, sempre naquela textura de quem é trazida da pedra para assumir uma imagem contemporânea do ideal renascentista de beleza e perfeição, a Menina desafia com a sua natureza despojada a exuberância da paisagem barroca. Finda a exposição, empacotadas e despedidas as dezenas de peças que reinterpretaram a paisagem de Mateus ao longo dessas semanas de 1981, a Menina ficou. Até hoje. E, mesmo que não tenha sido essa a intenção primeira do autor, persiste como evocação da matriz feminina, assertiva e persuasiva, que teceu a estabilidade secular da Casa e da sua memória.