EDIÇÃO
MONUMENTAL
D'OS LUSÍADAS
Naquele dia de fevereiro de 1817, D. José Maria de Sousa Botelho, o 5º Morgado de Mateus, podia finalmente dar-se ao prazer de manusear o resultado de muitos anos de trabalho e dedicação: a Edição Monumental de Os Lusíadas. Um exemplar em dois volumes, impresso em velino com um novo tipo de letra criado expressamente pela tipografia parisiense de Firmin Didot e ilustrado com desenhos originais de alguns dos pintores mais notórios da corte francesa, acompanhado de outros duzentos e dez exemplares em volume único destinados à distribuição pelas Casas Reais europeias, mas também por bibliotecas públicas em Portugal, França, Itália e muitas outras partes da Europa.
O exemplar único, em dois volumes, impresso em velino, da Edição Monumental de Os Lusíadas, bem como os originais das 13 gravuras, encontram-se na Biblioteca da Casa de Mateus.
O caminho percorrido até aqui fora longo, acidentado, só possível a partir da paixão que o Morgado dedicava ao Poeta e da consciência do seu papel maior na literatura universal. D. José Maria sempre se destacara na sua geração pela educação que havia recebido. Pioneiro do Colégio Real dos Nobres, criação de Marquês de Pombal destinada a modernizar o ensino das elites portuguesas, virá a tornar-se o primeiro nobre português a obter uma licenciatura em Matemática, na Universidade de Coimbra. O seu professor, Anastácio da Cunha, pioneiro do cálculo infinitesimal que haveria de ser condenado pela Inquisição pelo crime de heresia, reunia regularmente em sua casa um conjunto de intelectuais de todos os domínios que muito contribuíram para a formação do Morgado.
O fascínio e a admiração que sentia pelo poeta tomou um outro sentido quando, diplomata encarregado de convencer Napoleão a não invadir Portugal, compreendeu que a existência do País e a singularidade da sua cultura estavam em perigo real. Publicar e difundir a obra maior da língua portuguesa assume assim um duplo significado simbólico: uma comovente assunção do poder da poesia na afirmação de uma cultura, mas também uma convicção forte do lugar único que a cultura portuguesa tinha entre as culturas europeias.
Editor e filólogo autodidata, passa anos a comparar todas as edições que consegue alcançar, à procura de fixar a versão mais fiel às intenções originais do autor, enquanto se dedica a um estudo da vida de Camões que enriquecerá a experiência do leitor. Por entre essa aventura, empreendida com a tenacidade que o caracterizava, descobre a existência de duas supostas primeiras edições, ambas de 1572, a revelar o sucesso imediato da obra, mas também a história das suas sucessivas versões. Esteta refinado, leitor ávido das grandes edições do seu tempo, enceta um caminho árduo e longo para descobrir os autores das gravuras desta que será a primeira edição ilustrada do poema. O resultado não poderia ser melhor. François Gérard, ‘pintor dos reis e rei dos pintores’ franceses coordena todo o trabalho e encarrega-se ele próprio do retrato de Camões. Alexandre-Joseph Desenne, ilustrador coevo de edições de grandes autores como Racine, Voltaire ou Cervantes, e Alexandre-Évariste Fragonard, pintor e escultor romântico, assumem a autoria dos restantes doze desenhos.
Dos ecos que a edição teve em Portugal e na Europa, dão testemunho as dezenas de cartas de agradecimento que hoje podemos ver na Biblioteca da Casa de Mateus, desde o Papa Pio VII ao Duque de Richelieu, mas também da parte de bibliotecas públicas e instituições científicas por toda a Europa, para que o acesso à obra não ficasse apenas limitado às classes elevadas. É de assinalar que a primeira Biblioteca Pública da cidade do Porto virá a abrir em 1833, em boa parte em resultado da pressão de D. José Maria, que não concebia que não houvesse nesta cidade onde depositar a Edição Monumental de ‘Os Lusíadas’.