CONTADOR
BARGUEÑO
No século das Luzes, a Europa assiste à emergência de um novo paradigma fundado na autoridade e na legitimidade da razão, na afirmação da ciência e de um conhecimento fundado na experiência. Entre as transformações profundas que se vão operando, imperam ideias como progresso e liberdade, sobretudo a liberdade de contratação enquanto manifestação de uma vontade empreendedora. Não por acaso, neste mesmo século que viu nascer a Enciclopédia, uma peça de mobiliário assume um protagonismo especial: o contador. Objeto eminentemente prático, composto por séries de gavetas e um tampo móvel que permite a escrita, servia de escritório e arquivo para a salvaguarda de documentos importantes. Sujeito às contingências da vida dos seus proprietários, fundamental enquanto memória e meio de prova, era necessariamente portátil, dotado de pegas e de tamanho bastante para ser transportado num cavalo de carga.

Este contador ibérico, de inspiração árabe, simboliza o cuidado posto pelas sucessivas gerações da família no arquivo de toda a documentação para boa administração da Casa e do seu património.

Símbolo do poder e da influência de quem os detinha, a riqueza da sua decoração inspirou toda uma indústria do requinte, que encontrou os seus tradutores mais exímios nos artesãos de Bargas, pequeno município da província de Toledo, herdeiros de uma tradição árabe fortemente enraizada na Península. Os Contadores Bargueños, de que encontramos exemplares datados do séc. XVI, rapidamente se tornaram, assim, um marco de referência em toda a Europa, mobilando cartórios reais e senhoriais.
Se bem que o exemplar que aqui encontramos, construído em nogueira, com aplicações em osso, marfim e ferro estanhado, apenas tenha vindo ao espólio da Casa no segundo quartel do séc. XIX, num episódio curioso a que já voltaremos, simboliza o cuidado posto pela família na boa administração do seu património desde que, em 1641, o Licenciado António Álvares Coelho instituiu o vínculo de Mateus. O documento mais antigo que podemos encontrar hoje no Arquivo da Casa de Mateus data, de resto, de 1577 e regista a aquisição do edifício que hoje conhecemos como Casas da Adega, marcando o momento inicial da construção desta paisagem.
Filho do construtor da Casa, D. Luís António de Sousa Botelho, 4º Morgado de Mateus, viveu uma vida longa e intensa (1722/1798), juntando à administração da Casa a finalização da nova Capela, assumindo um papel decisivo na criação da Região Demarcada do Douro ou, finalmente, cumprindo um dos destinos familiares mais almejados: entre 1765 e 1775, por designação do Marquês de Pombal, exerceu as funções de Governador-Geral da Capitania de São Paulo, no Brasil, procurando aí traduzir o seu tempo e agir como um estadista esclarecido.
Regressado a Mateus, empenhou-se na reorganização do cartório familiar segundo uma metodologia imbuída do espírito racionalista e iluminista, objetivada na intenção assumida da “ordem para o bom uso”. Assim, concebeu a coexistência das duas parcelas documentais: a que compunha o cartório, referente aos títulos familiares, e os “meus papéis”, uma documentação eminentemente individual, produzida pelos diversos membros da família no cumprimento de funções de ordem pública e privada. Mais tarde, seu filho D. José Maria, haveria de prosseguir essa reorganização e refinar a organização em Gavetas, ainda hoje mantidas como modo de estruturação orgânico-funcional do Sistema de Informação da Casa de Mateus. Em carta escrita a seu filho, D. José Luís, evoca as «obrigações de um pai [em] deixar-te na melhor ordem os bens da fortuna, que te segurassem uma honesta independência e a suprema felicidade de poder fazer bem…». Seria, de resto, D. José Luís, o 1º Conde de Vila Real, a acrescentar ao espólio da Casa este magnífico Contador Bargueño, ao recebê-lo em troca de um deslumbrante colar de safiras que o seu amigo D. Fernando II, rei consorte de Portugal e príncipe de Saxe-Coburg, viúvo da Rainha D. Maria II, escolheu oferecer a Elise Hensler como prenda do seu novo casamento com a cantora de ópera que mais tarde se tornaria Condessa d’Edla.
